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O Grupo de Estudos de Educação Infantil e Infâncias (GEIN) atua em pesquisas e na formação acadêmica de professores e gestores no campo da infância deste 1996. Além da pesquisa e da docência na Graduação e no Pós-graduação na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FACED/UFRGS), o GEIN vem desenvolvendo atividades de extensão e assessoria, bem como a publicação de livros e artigos sobre formação de professores de educação infantil, infâncias, processos de aprendizagem, sexualidade e gênero, proposições pedagógicas em espaços educativos, entre outras temáticas. A partir do GEIN e da área de Educação Infantil da FACED-UFRGS criamos a linha de pesquisa, junto ao Programa de Pós-graduação em Educação, Estudos Sobre Infãncias, tendo como objetivo central examinar as infâncias e sua educação na multiplicidade e heterogeneidade de espaços e contextos, explorando e examinando as diferentes versões das infâncias na contemporaneidade, suas propostas educativas, bem como as pedagogias e produções culturais direcionadas às crianças.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Reprodução interpretativa e cultura de pares em crianças


Reprodução interpretativa e cultura de pares em crianças
William A. Corsaro
Indiana University, Bloomington
Tradução: Ana Carvalho


Reprodução interpretativa


Ofereço em meu trabalho uma abordagem à socialização na infância que denomino Reprodução Interpretativa (Corsaro, 2005).


1. O termo interpretativa captura os aspectos inovadores da participação das crianças na sociedade, indicando o fato de que as crianças criam e participam de suas culturas de pares singulares por meio da apropriação de informações do mundo adulto de forma a atender aos seus interesses próprios enquanto crianças.
2. O termo reprodução significa que as crianças não apenas internalizam a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e a mudança cultural. Significa também que as crianças são circunscritas pela reprodução cultural. Isto é, crianças e suas infâncias são afetadas pelas sociedades e culturas das quais são membros.


Verifiquei em meus estudos que a produção de sua cultura de pares pelas crianças não é uma questão de simples imitação. As crianças apreendem criativamente informações do mundo adulto para produzir suas culturas singulares.
Defino cultura de pares como um conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham na interação com seus pares.

Nesta apresentação vou tratar de dois exemplos de rotinas da cultura de crianças pequenas. Vamos examinar alguns exemplos videogravados dessas rotinas e refletir sobre sua importância na vida cotidiana das crianças. Na conclusão, considero a possibilidade de que essas rotinas sejam aspectos universais das culturas de pares em crianças, dada sua produção em diferentes espaços e tempos.
Brincadeira de aproximação-evitação
Brincadeira de dramatização de papéis

Brincadeira de aproximação-evitação


Exemplo da Apple Girl registrado nas notas de campo.

Apresentacão da seqüência videogravada de aproximação-evitação.

Interromper e perguntar sobre movimentos de porovocação e sua relação com a cultura de pares. Em seguida, mostrar o resto da seqüência e dizer que vamos falar sobre cada fase.

Apresentar slides 4 a 7 explicando as fases de aproximação-evitação.

Como discutirei mais adiante, a estrutura básica de aproximação-evitação aparece em exemplos formais de brincadeiras com regras, como La Strega (A Bruxa) na Itália, e muitas outras.

Apresentar slides 8 e 9

II. Importância da aproximação-evitação na cultura de pares

A.     O agente que ameaça é em última instância controlado pelas crianças ameaçadas
B.     A estrutura da rotina produz acumulação e liberação de tensão
C.     As crianças ameaçadas podem iniciar, reciclar, acrescentar elementos (“enriquecer”) e encerrar a rotina.

III. Implicações da aproximação-evitação para a Reprodução Interpretativa

A.     As crianças produzem coletivamente uma rotina na qual compartilham a acumulação de tensão, a excitação da ameaça, e o alívio e alegria da fuga.
B.     As representações sociais de perigo, mal, desconhecido e outras ambigüidades, que estão se desenvolvendo nas crianças, são mais firmemente apreendidas e controladas.

Como discutirei adiante, a estrutura básica de aproximação-evitação parece ser a base de muitos tipos de brincadeiras de perseguição e fuga de crianças em todo o mundo. É interessante notar que observamos esta rotina espontânea em crianças muito pequenas, mesmo antes que estejam brincando de brincadeiras mais formais que mais tarde se constroem sobre esta rotina.


Brincadeiras de dramatização de papéis


Pesquisadores que estudam crianças argumentam já há muito tempo a respeito da importância de brincadeiras de dramatização de papéis para o desenvolvimento social e emocional das crianças. Tal como a maioria dos adultos, esses pesquisadores quase sempre vêm os jogos de papéis como imitação direta de modelos adultos. No entanto, as crianças não imitam simplesmente modelos adultos nessas brincadeiras, mas antes elaboram e enriquecem continuamente os modelos adultos para atender seus próprios interesses.
A apropriação e enriquecimento de modelos adultos pelas crianças se refere primariamente a status, poder e controle. Ao assumir papéis adultos, as crianças adquirem poder (são “empoderadas”). Elas utilizam a licença dramática da brincadeira imaginativa para projetar o futuro – a época em que elas terão poder e controle sobre si mesmas e sobre os outros.
Jogos de papéis também permitem que a criança faça experiências sobre como diferentes tipos de pessoas da sociedade agem e se relacionam entre si. Um aspecto de grande importância para as crianças é o gênero e as expectativas sobre comportamento de meninas e meninas e a forma como papéis são socialmente estereotipados por gênero. Novamente veremos aqui que as crianças não aceitam esses estereótipos, mas os desafiam e refinam. Assim, expectativas de gênero não são simplesmente inculcadas nas crianças pelos adultos, mas são socialmente construídas pelas crianças nas interações com adultos e entre si.

Jogo de papéis e poder social


As crianças começam a brincar de papéis já aos dois anos de idade, e a maior parte dos jogos de papéis entre dois e cinco anos é sobre expressão de poder. Em minha dissertação, eu estava interessado no uso da linguagem na brincadeira entre um irmão e uma irmã, Krister e Mia, e um segundo garoto, Buddy. Em uma das sessões de brincadeira, Mia (que tinha quatro anos e tinha estado na pré-escola) e os dois meninos (ambos com cerca de dois anos e meio e sem experiência de pré-escola) iniciaram uma seqüência de jogo de papéis quando Mia sugeriu que brincassem de professor. Krister quis ser o professor, e trouxe uma cadeira para a frente de um grande quadro negro existente na sala. Mia, Buddy e eu nos sentamos no chão, como alunos.
Krister pegou o giz e disse: “Agora escrevam isto!”, e desenhou diversas linhas.
“Isso não são letras, são só linhas”, eu provoquei.
“Ele ainda não escreve bem”, me respondeu Mia meio aborrecida. “Faça de conta que são letras”.
Mas Krister não permitiu que sua autoridade fosse desafiada. Gritou comigo: “Bill, você é mau! Vá sentar no canto agora mesmo!”. Krister apontou para um canto da sala e eu peguei minha folha de papel e fui sentar lá. Buddy e Mia começaram a rir, mas Krister deu mais algumas ordens sobre o que devia ser escrito, e Mia, Buddy e eu o atendemos.
Vemos aqui uma criança pequena, que não tinha experiência de escola, mas tinha a informação de que professores são poderosos e dizem às crianças o que elas devem fazer. Além disso, garotos mal comportados têm que se sentar no canto. Será que Krister aprendeu isso com Mia? É possível, mas não a partir da experiência dela na pré-escola. O pai deles me garantiu que na escola de Mia não se mandava criança sentar no canto. Talvez a informação tenha vindo de algo na televisão, tal como um desenho animado ou uma brincadeira de adultos sobre crianças que não se comportam bem na escola terem que sentar no canto. A fonte da informação de Krister importa menos do que seu desejo de expressar o poder que se tem em um papel adulto e hierarquicamente superior (isto é, um papel com o maior poder ou autoridade), uma situação em que as crianças raramente se encontram.
No jogo sócio-dramático as crianças desfrutam a assunção e expressão de poder. É divertido. Em um episódio complexo de jogo de papéis de meu trabalho em Berkeley, as crianças (todas em torno de quatro anos de idade) claramente expressavam poder e controle nos papéis hierarquicamente superiores, se comportavam mal e obedeciam nos papéis subordinados, cooperavam nos papéis de status equivalente, mas se confundiam a respeito do arranjo e das expectativas de gênero em outros papéis.
Um menino, Bill, e uma menina, Rita, entraram no andar de cima da casa de bonecas levando bolsas e uma maleta. Antes de subir eles tinham combinado a respeito dos papéis de marido e mulher. Depois de deixarem as bolsas e maleta no chão, eles olharam para as crianças que brincavam no piso inferior da sala. Viram dois meninos, Charles e Denny, engatinhando e miando como gatos. Agora vou mostrar um vídeo dessa brincadeira, e vocês podem acompanhar na transcrição.

Apresentar vídeo do jogo de papéis “Dois maridos”


(Referir ao exemplo 1 da transcrição)

Vemos nesta seqüência que o marido e a mulher expressam claramente sua autoridade sobre os gatinhos por meio do uso de imperativos expressos com entonações fortes e acompanhados por gestos de controle. Mas vemos também que os gatinhos provocam essas manifestações fortes através de mau comportamento e resistência. De fato, em muitos episódios de jogo de papéis os subordinados (crianças, ou animais de estimação) freqüentemente se comportavam mal, fazendo exatamente o que lhes era dito para não fazerem!
Nesse processo emergem enredos de disciplina com uma estrutura de linguagem semelhante à que vimos acima, na qual o poder é claramente exibido e imposto. È como se as crianças quisessem que isso acontecesse. Elas querem criar e compartilhar emocionalmente o poder e controle que os adultos têm sobre elas.
Depois que os gatinhos foram embora, marido e mulher decidiram que a casa precisava de uma limpeza. Em harmonia com papéis estereotipados de gênero, Bill arrastou os móveis enquanto sua esposa, Rita, limpava o chão. Aqui as crianças trabalham juntas em acordo com expectativas estereotipadas de gênero que se expressam em ações (isto é, maridos são fortes e ajudam arrastando os móveis enquanto as mulheres fazem a limpeza) e são reforçadas em avaliações verbais (por exemplo, Rita nota que Bill é um homem forte e prestativo).
Enquanto Rita está fazendo de conta que enxuga o chão, os gatinhos voltam. Bill tenta impedir que eles entrem, mas eles correm para dentro no chão recém limpo. Bill tenta enxotá-los de volta para a escada.
Nesta seqüência o jogo de papéis encontra um obstáculo, pelo menos para Rita, quando Denny decide que não quer mais ser um gato. Talvez ele estivesse ficando cansado de ser enxotado pela escada. De qualquer forma, Bill sugere que Denny também seja marido e quando Denny aceita ele diz: “Tá bom, precisamos de dois maridos”. Não fica claro porque Bill faz essa proposta. Provavelmente, como Denny é um menino, e homens são maridos, Bill acha que Denny deve ser um marido, como ele próprio.
Rita, no entanto, pensa de outra forma, e vê um problema que vai além dos estereótipos de gênero: uma mulher e dois maridos. Enquanto os meninos dançam e comemoram os papéis de dois maridos, Rita argumenta sem sucesso que ela não pode conquistar, ter, casar com, ou amar dois maridos.
Ela sabe que há alguma coisa errada nessa relação (pelo menos entre os adultos de sua cultura). O que há de errado tem a ver com sua compreensão emergente de que os papéis de marido e mulher não são apenas específicos dos gêneros, mas também se relacionam entre si de maneiras particulares. Maridos e mulheres se amam e se casam. Está até pressuposto que isso ocorre em sua relação de faz de conta com Bill. Mas o que é que ela vai fazer com Denny?
Ela parece oferecer a Denny o papel de avó: “Não posso ter dois maridos porque tenho uma avó”. Mas sua frase é confusa e avó está no gênero errado – se fosse avô poderia ter funcionado. É interessante o contraste entre o entusiasmo dos meninos por serem dois maridos – Bill chega a sugerir que eles se casem, mas a cerimônia não ocorre – e o desconforto de Rita com essa proposta. No final, ela resolve o problema tornando-se um gatinho, e a brincadeira continua com um retorno a mau comportamento e disciplina.
No entanto, Rita teve uma percepção sobre a complexidade das relações de papéis. Nos termos de Piaget, ela teve um desequilíbrio em seu sentido do mundo social e tentou compensá-lo. Vemos, portanto, que o jogo de papéis é diversão e improvisação, é imprevisível e rico de oportunidades para reflexão e aprendizagem. 

Non C’e Zuppa Inglese: Ajustando o contexto no jogo de papéis

O jogo de papéis envolve mais do que a aprendizagem de conhecimentos sociais específicos; envolve também aprender a relação entre contexto e comportamento. Como argumenta o antropólogo Gregory Bateson (1956), ao brincar de papéis a criança não aprende apenas algo a respeito da posição social específica daquele papel, mas “aprende também que existem papéis”. Segundo Bateson (1956), a criança “adquire um novo modo de ver, parcialmente flexível e parcialmente rígido”, e aprende “o fato da flexibilidade estilística e o fato de que a escolha de estilo ou de papel está relacionada à ‘moldura’ ou contexto do comportamento”.
O reconhecimento, pela criança, do “poder transformador” da brincadeira é um elemento importante da cultura de pares. É ao uso que ela faz desse poder transformador no jogo de papéis que vou me referir como “ajustando o contexto”, em acordo com Bateson e com o sociólogo Irving Goffman (1974). Vamos ver um exemplo.
Em Bolonha, Emília, uma menina, fez uma loja de sorvete com duas de suas amigas. Ela se aproximou de onde eu estava brincando com três meninos, Alberto, Alessio e Stefano. Estou com o microfone na mão porque estamos videogravando a brincadeira (Corsaro, 2003).
Vamos ver o vídeo desse exemplo, e depois ler a tradução do que as crianças estão dizendo.


Neste exemplo, Emilia quer inicialmente permanecer no contexto delimitado do fazer de conta que tem uma pequena loja de sorvete, com sabores que podem ser representados por objetos existentes no pátio: lixo, folhas etc. Embora eu tenha dificuldades para fazer meu pedido, por causa do meu italiano ainda meio precário, permaneço no contexto e aceito, ou antes, proponho “chocolate”, um sabor que sei que ela tem. Mas Stefano, e depois Alberto, dizem mais ou menos: “Qual é a graça disso?!” Eles ajustam ou ampliam o contexto pedindo de propósito os sabores que sabem que Emilia não tem, ou  faz de conta que não tem. Assim, todo o jogo de papéis passa a ser sobre “brincar com a brincadeira”.
Esta reviravolta nos eventos fica mais clara quando Alberto chama Emilia quando ela está se afastando, e pede zuppa inglese (um sabor raro de sorvete, associado a uma sobremesa inglesa[2]). Nessa altura, até eu entendo o que está acontecendo, e me associo às risadas dos outros meninos diante do pedido de Alberto. Emilia, fingindo-se aborrecida, está claramente se divertindo em lidar com Alberto. Ela desfruta a oportunidade de recusar o pedido, respondendo “Non c’e zuppa inglese!”. A resposta de Alberto a isso é pedir banana! Mais tarde, no entanto, Emilia dá um pouco o braço a torcer, e diz que pode ser que tenha pistache e que vai checar se tem refrigerante de laranja.

Conclusão


Brincadeira e cultura de pares hoje e em outras épocas e lugares

Serão as brincadeiras de aproximação-evitação e o jogo de papéis aspectos universais da cultura de pares em crianças?

Aproximação-evitação


A aproximação – evitação tal como vimos na rotina do exemplo anterior é um tipo de brincadeira que tem sido documentado em diferentes épocas e diferentes culturas. Relaciona-se claramente com diversas brincadeiras de perseguição e fuga em que uma criança assume o papel de agente ameaçador.
Em meu trabalho na Itália (Corsaro,2005), documentei uma brincadeira chamada La Strega,ou A Bruxa, que tem diversas variações dos aspectos básicos da rotina de aproximação-evitação que comentamos aqui.
Esse tipo de brincadeira também foi documentado entre crianças !Kung na Nambia, Sudoeste da África, pela antropóloga Lorna Marshall em 1950-1960. As crianças brincavam de um jogo chamado “sapos”, um inverso do “Mamãe, eu posso?” A brincadeira começa com a escolha de uma criança para ser “mãe de todos”, as demais crianças sentando-se em círculo. Quando a mãe toca uma criança com uma vareta, a criança finge que está dormindo. Quando todas as crianças estão dormindo, a mãe arranca cabelos de sua cabeça e os coloca em um caldeirão imaginário para cozinharem. Os cabelos são “sapos” que foram caçados para serem comidos. Quando os sapos estão cozidos, a mãe acorda os filhos um por um e pede a cada um que vá buscar seu pilão e a mão do pilão para que ela termine de preparar os sapos. Mas as crianças se recusam, então a mãe, zangada, vai ela mesma buscar o pilão e a mão de pilão. Enquanto ela está longe, as crianças roubam os sapos e fogem para se esconder. Quando a mãe volta, ela finge estar muito zangada e persegue as crianças.
Quando encontra uma criança, bate nela com o dedo. Essa ação “quebra a cabeça” de forma que os “ miolos da criança escorrem para fora”, e a mão então finge beber os “miolos”. A parte final da brincadeira freqüentemente resulta em caos, quando as crianças tentam escapar da mãe. Em seguida as crianças passam a perseguir umas às outras, rindo e batendo nas cabeças umas das outras (Marshall, 1976, citado em Schwartzman, 1978, p. 126).      
É óbvia a correspondência com a seqüência de aproximação-evitação que vimos antes, embora a brincadeira seja mais elaborada e complexa.

Jogo de papéis


A historiadora Barbara Hanawalt, em seu livro Growing up in Medieval London (1993) relata que as crianças da Londres medieval envolviam-se em dramatização de papéis tais como reproduzir a celebração de cerimônias religiosas e casamentos.
Com base em entrevistas com ex-escravos, Lester Alston (1992) e David Wiggins (1985) relatam que crianças escravas da época anterior à Guerra Civil nos EUA envolviam-se em uma diversidade de tipos de jogos de papéis, que novamente incluíam cerimônias religiosas, como batismos, e especialmente “leilões de escravos”, que claramente ajudavam as crianças a lidar com as fortes emoções provocadas pela possibilidade de serem separadas de suas famílias nas comunidades escravas.
Cindi Katz, em seu trabalho etnográfico sobre brincadeira e trabalho entre crianças sudanesas de áreas rurais na década de 80, documentou jogos de papéis elaborados e claramente associados a atividades adultas. Os meninos reproduziam diversas atividades relacionadas com a agricultura e o comércio e seus ganhos decorrentes daquelas atividades. Um aspecto central da brincadeira era um trator de brinquedo feito por um dos meninos, com a ajuda de um irmão mais velho, a partir de diversos objetos descartados (sucata). Os meninos fizeram um arado para o trator, e reproduziam cooperativamente e trabalhosamente todos os diversos elementos do trabalho agrícola, desde revolver o solo com o arado, plantar e regar a plantação, até irrigação, tirar mato, e finalmente colher e levar o produto da colheita a um armazém de faz de conta. Também reproduziam o processo de vender a colheita usando dinheiro de mentira. Finalmente, usavam os lucros de faz de conta para brincar de loja, onde compravam uma variedade de produtos representados por objetos como pedaços de metal e vidro e restos de baterias (Katz, 2004, p. 12-13).
A brincadeira das meninas também era elaborada. Faziam bonecas de palha, nomeavam as bonecas, que representava homens e mulheres de todas as idades, e brincavam com as bonecas em casas ‘que criavam com divisórias feitas de sapatos, pilões, tijolos e pedaços de lata’ (Katz, 2004, p.17).
As meninas usavam esses suportes materiais para encenar uma variedade de atividades domésticas como cozinhar, comer, buscar água no poço e fazer visitas. Essas atividades, embora próximas do modelo adulto, eram altamente inovadoras em comparação com os brinquedos de crianças ocidentais pela forma inventiva de uso pelas crianças de uma variedade de materiais naturais ou sucata.
Em suma, há evidências significativas em apoio à proposição de que rotinas de aproximação-evitação e brincadeiras de dramatização de papéis são elementos universais das culturas de pares em crianças. No entanto, são necessários mais estudos sobre a brincadeira de crianças em muitos outros grupos culturais para sustentar inteiramente essa proposição e apreender a diversidade de estilos e de natureza dessas importantes rotinas lúdicas na vida cotidiana das crianças.

Referências
Alston, L. (1992). Children as chattel. In E. West & P. Petrick (Eds.), Small worlds (pp. 208-231). Lawrence, KS: University Press of Kansas.
Bateson, G. (1956). “This is play” in Group processes: Transactions of the second conference. New York: Joseph Macey, Jr. Foundation.
Corsaro, W. (2003). “We’re friends, right?: Inside kids’ culture. Washington, D.C.: Joseph Henry Press.
Corsaro, W. (2005). The Sociology of Childhood. 2nd edition. Thousand Oaks, CA: Pine Forge Press.
Goffman, E. (1974). Frame analysis. New York: Harper & Row.
Hanawalt, B. (1993). Growing up in medieval London. New York: Oxford University Press.
Katz, Cindi. (2004). Growing up global. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press.
Marshall, L. (1976). The !Kung of Nyae Nyae. Cambridge, MA: Harvard University Press.
Schwartzman, H. (1978). Transformations: The anthropology of children’s play New York: Plenum.
Wiggins, D. (1985). The play of slave children in the plantation communities of the old South, 1820-60. In N. Hiner & J. Hawes (Eds.), Growing up in America: Children in historical perspective (pp. 173-192). Urbana, IL: University of Illinois Press.


[1] NT: Preservei a palavra “pares”, mas fique claro que o sentido não é o de duplas, e sim de parceiros, de iguais – como em “pares do reino”. Em nosso próprio trabalho, preferimos a expressão Cultura do grupo de brinquedo.
[2] Trifle: um bolo tipo pão-de-ló, umedecido com vinho, coberto com geléia e molho de creme, chantilly etc..


*** este texto é parte de uma apresentação, portanto, contém algumas anotações feitas pelo autor para organizar a mesma. 

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